terça-feira, 26 de abril de 2011

A VIDA ETERNA




Por João Soares Jr.

As pessoas não deveriam morrer, nunca. Esta vida aqui na terra poderia ser eterna e saudades é um sentimento que não deveria existir, pois a presença vital de quem gostamos jamais deveria nos deixar_ desabafo íntimo.
A dor moral de perca é sempre maior do que imaginamos. Mesmo racionalmente sabendo de nossa vulnerabilidade, não há nada pior nesta vida. Sim, o pior da Vida é a morte. Quem nunca sofreu a perca de um ente querido? Quem não teme perder um ente querido? O espaço que um ser humano preenche neste mundo é único e insubstituível e, às vezes, só próximos dele podemos notar. Pena, mais ainda, quando o perdermos e fica tão notável aquela constatação por causa do vazio que ficou onde uma pessoa preenchia. A nossa humanidade barra neste drama, paradigma, limitação. Mistério? Seja o que for, há um ditado popular que diz que "há jeito pra tudo menos pra morte". Verdade, em partes.
Nossa sede de transcendência tem muitos motivos de existir, desde aquela inquietação da graça divina no homem a qual se referia Santo Agostinho: "Tu nos fizeste para ti [Senhor] e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em ti", a uma simples constatação lógica de que algo bom demais como a Vida inteligente neste planeta não fora obra do "acaso". Mas, poucas coisas nos instigam tanto à transcendência quanto a morte, ou, a vida após a morte. Diversas religiões ou filosofias têm suas maneiras próprias de dar uma resposta a este mistério, não entraremos no mérito delas, porém, apenas no cristianismo este drama fora, de fato, vencido. Cristo, mesmo sendo Deus, quisera passar pela condição humana, não escapara da morte, e que morte (a mais dramática de todos os tempos). E quando os seus ainda choravam a perca, o triunfo, Cristo Ressuscitou ao terceiro dia, num corpo glorioso! Vencera a morte.
Um piedoso sacerdote, Pe. Henrique, capelão do Carmelo em Montes Claros-MG, dissera em homilia na sexta feira da paixão que "O dia mais importante de nossa vida é o dia de nossa morte", palavras muito felizes. Para o Cristão, a morte é o começo para a Vida definitiva ou para o julgamento (Jo5,29). Não há nada mais esperado do que ir ao encontro de quem se ama. E a quem mais se deve amar? A Deus. O dia mais importante da vida é o dia da morte porque vamos ao encontro do Senhor, felizes os que estiverem preparados para se encontrar com Ele, face a face. Felizes também quem souber amar aqui aos seus enquanto estiverem presentes.

"Para mim, a vida é Cristo, e morrer é lucro" (Fl 1,21). "Fiel é esta palavra: se com Ele morremos, com Ele viveremos" (2Tm 1,11).

A data em que começo a escrever este texto é 23 de abril, sábado de aleluia de 2011, hoje me solidarizo em profundas condolências com uma família de amigos que ha dois dias perdera repentinamente duas entes queridas. Sábado de aleluia é conhecido também como o dia de espera, a espera da Ressurreição de Cristo que se celebra no Domingo. Percebe-se que nesta vida aqui na terra vivemos como num "constante sábado de aleluia", a espera de nos encontrarmos um dia com nossos entes que tanto amamos e que se foram desta para outra bem melhor. Mas na certeza da Ressurreição, pois o Cristo ressuscitou, como primícias dos que adormeceram (1Cor15,23-26) e nos abriu as portas para a Vida eterna. Aleluia.



FELIZ PÁSCOA!


quarta-feira, 20 de abril de 2011

A PAIXÃO CORPORAL DE JESUS





Por Dr.Pierre Barbet

Escrevi esta meditação na festa da Circuncisão de 1940. Se ainda existe uma lenda firmemente ancorada no espírito humano, essa é a da dureza do coração dos cirurgiões; o exercício, não é verdade? Amortece as sensações e este costume reforçado pela necessidade de um mal por um bem, nos coloca em um estado de serena insensibilidade. Isto é falso! Se nos enrijecemos contra a emoção que não deve nem aparecer, nem ainda, quando interior, entravar o ato cirúrgico (como o boxeador que, instintivamente, contra o epigastro, quando espera um sou), a compaixão nos fica sempre viva e até se refina com a idade. Quando já alguém esteve inclinado durante anos sobre o sofrimento de outrem e quando já experimentou por si mesmo, está certamente mais perto da indiferença, porque conhece melhor a dor, porque conhece melhor a causa e os efeitos.
Assim pois, um cirurgião que já tenha meditado sobre os sofrimentos da Paixão, que já lhe tenha analisado os tempos e as circunstâncias fisiológicas, que já se tenha aplicado a reconstituir metodicamente todas as etapas desse martírio de uma noite e de um dia, poderá melhor que o pregador mais eloqüente, melhor que o mais santo dos ascetas (deixando de lado os que disso tiveram diretas visões, e esses se aniquilavam com elas), compadecer, i. é, padecer com os sofrimentos de Cristo. E vos posso assegurar que é penosíssimo. Quanto a mim, cheguei ao ponto de nem sequer ousar pensar neles. É fraqueza, sem dúvida alguma, mas creio que será necessário ter uma virtude heróica ou nada compreender de tudo isto, que se deve ser um santo ou um inconsciente par fazer uma Via-Sacra. Eu, não posso mais fazê-la.
E foi, no entanto, justamente esta Via-Sacra que me pediram para escrever; apesar de tudo não quero recusar-me porque estou seguro de que isto deverá fazer bem a muitos. O bone et dulcissime Jesus, ó bom e dulcíssimo Jesus, socorrei-me! Vós, que os suportastes, fazei que eu saiba explicar bem esses vossos sofrimentos. Talvez esforçando-me por me conservar objetivo, opondo à emoção minha “insensibilidade” cirúrgica, talvez possa chegar ao fim. Se me encontrares a solução antes do fim, meu bom amigo leitor, segue meu exemplo se pejo; é que tudo compreendeste. Segue-me pois: teremos por guias os Livros Sagrados e o Santo Sudário, cuja autenticidade me foi demonstrada por estudo científico.
A Paixão, na verdade, começou no dia de Natal, pois que Jesus em sua onisciência, soube sempre, sempre viu e quis os sofrimentos que aguardavam sua Humanidade. O primeiro sangue derramado por nós foi o da Circuncisão, oito dias após o Natal. Bem se pode imaginar o que será para um homem a previsão exata de seu martírio.
No entanto, é no Getsêmani que vai começar a holocausto. Jesus, tendo feito os seus comerem sua carne e beberem o seu sangue, os conduz noite a dentro para o Jardim da Oliveiras, como de costume. Deixa-os se acomodarem perto da entrada, conduz um pouco além seus três íntimos, afasta-se à distância de uma pedrada, para se preparar orando. Sabe que sua hora está chegando. Ele próprio enviara o traidor de Karioth: quod facis, fac citius (o que vais fazer, faze-o logo, João 13, 27). Tem pressa de terminar o que quer fazer. Mas, como revestira Ele, ao se incarnar, esta forma de escravo que é a nossa humanidade, revolta-se esta, e dá-se toda a tragédia de uma luta entre sua Vontade e a natureza: “Coepit pavere taederet - Começou a ter pavor e a angustiar-se” Marcos. 14, 33.
Contém esta taça, que deve beber, duas amarguras: a primeira é o ter que assumir os pecados dos homens, Ele, o Justo, para resgatar seus irmãos e é, sem dúvida, o mais duro: uma prova que não podemos imaginar, porque os mais santos, dentre nós, são precisamente os que mais sentem sua própria indignidade e sua infâmia. Talvez possamos compreender melhor a previsão, a pregustação das torturas físicas, que já experimenta Ele, por pensamentos; no entanto, não temos experimentado senão o arrepio retrospectivo de sofrimentos passados. É qualquer coisa de indizível. “Pater, si vis, tranfer calicem istum a me; verumtamen, non mea voluntas, sed tua fiat – Pai, se queres, afasta de mim este cálice, no entanto, que não se faça a minha vontade mas a tua!” (Lc. 22, 42. É sua humanidade que fala... e que se submete, porque tua Divindade sabe o que quer, desde toda a eternidade; o Homem está num beco sem saída. Seus três fiéis adormeceram “prae tristitia – de tristeza” Lc. 22, 45), diz São Lucas. Pobres homens!
A luta é simplesmente espantosa; um anjo vem reconfortá-lo ao mesmo tempo, parece receber sua aceitação. “Et factus in agonia, prolixius orabes. Et factus est sudor ejus sicut guttae sanguinis decurrentis in terram. – E se encontrando em agonia, orava com mais instância. E seu suor tornou-se como coágulos de sangue caindo pelo chão”.(Lc. 22, 44). É suor de sangue que alguns exegetas racionalistas, farejando algum milagre, tacharam de simbólico. É curioso verificar quantas asneiras esses materialistas modernos são capazes de dizer em matéria científica. Notemos que o único evangelista que relata o fato é um médico. E nosso venerado confrade Lucas, “medicus caríssimus” como o chama São Paulo em sua carta aos Colossenses, o faz com a precisão e concisão de um clínico. A hematidrose é fenômeno raro, mas bem descrito. Aparece segundo o Dr. Le Bec “em condições completamente especiais: uma grande debilidade física, acompanhada de um abalo moral, seguido de profunda emoção de grande medo” (“Le Supplice de La Croix”. Paris, 1925, loc cid.) (et coepit pavere er taedere). O medo, o terror e o abalo moral estão aqui, no auge. É o que Lucas exprime por “agonia” que em grego significa luta, ansiedade, angústia. E o suor tornou-se como coágulos de sangue caindo por terra. Para que explicar o fenômeno? Uma vasodilatação intensa de capilares subcutâneos que se rompem em contacto com os fundos-de-saco de milhões de glândulas sudoríparas. O sangue se mistura ao suor e se coagula na pele após a exsudação. É esta mistura de suor e de coágulos que se reúne e escorre por todo o corpo em quantidade suficiente para cair por terra. Notai que essa hemorragia microscópica se produz em toda a pele, que fica portanto atingida e prejudicada em seu conjunto e, de algum modo, dolorida, e mais sensível para todos os golpes futuros. Mas, passemos adiante.
Eis Judas e os esbirros do Sinédrio, armados com espadas e paus, trazem também lanternas e cordas. Lá está, igualmente, a coorte dos soldados do Templo, comandada por seu tribuno. Bem que se havia tomado precaução de alertar os Romanos e coorte da fortaleza Antônia. Sua vez de atuar só viria mais tarde, quando os Judeus, depois de pronunciada sua sentença, a fizeram homologar pelo Procurador. Jesus se adianta, uma sua palavra é suficiente para derrubar seus agressores, derradeira manifestação de seu poder, antes que se abandone á Vontade Divina. O ardoroso Pedro aproveitou da ocasião para decepar a orelha de Malcos e, último milagre, Jesus sarou-a.
Mas o bando ululante de refez, prendeu o Messias, arrastou-o sem delicadeza alguma, bem o podemos conjecturar, deixando fugir os comparsas. É o abandono, pelo menos aparente. Sabe Jesus muito bem que Pedro e João o seguem “a longe - de longe” (Mc. 15, 54; Jo. 19, 15) e que Marcos não escaparia à prisão a não ser fugindo nu, deixando nas mãos dos guardas, o “sindon” com que estava envolvido.
Mas, ei-los agora diante de Caifás e do Sinédrio. É noite avançada, não se pode tratar senão de uma instrução preliminar. Jesus recusa responder: sua doutrina, pregara-a abertamente. Caifás está desorientado, furioso, e um de seus guardas traduzindo este despeito, aplica um grande tapa no rosto réu: “sic respondes pontifici? – É assim que respondes ao Pontífice?” Jo. 18, 22.
Isto nada vale com processo. É necessário aguardar a manhã para ouvirem as testemunhas. Jesus é arrastado para fora da sala. No pátio vê Pedro que acabara de o renegar por três vezes, e com um olhar o perdoa. Arrastaram-no então para algum dos compartimentos inferiores (destinados ao pessoal de serviço e guardas) e ali a canalha dos esbirros vai entregar-se de coração alegre a tirar sua desforra contra esse falso profeta (devidamente amarrado) que, há pouquinho, os lançara por terra por desconhecido sortilégio. Enchem-no de bofetadas e de socos, escarram-lhe no rosto e, uma vez que também não mais poderiam dormir, aproveitariam para uma diversãozinha. Eis que colocaram um véu sobre sua cabeça, e cada um, ali irá dar seu golpe; os tapas reboaram   (e estes brutos têm a mão pesada!): “Profetiza, diz-nos, ó Cristo, quem te bateu”. Seu corpo está completamente dolorido, a cabeça soa como um sino; sobrevêm vertigens... cala-se. Com uma única palavra poderia aniquilá-los ”et non aperuit os suum – e não abriu a boca” (Isaías. 3, 7). Essa gentalha acaba por se fatigar e Jesus espera.
De manhã cedo, segunda audiência, lamentável desfilada de falsas testemunhas que nada provam. É necessário que Ele se condene a si próprio afirmando sua filiação divina, e aquêle vil histrião, Caifás, proclama-o blasfemo rasgando as vestes. Oh! Não vos preocupeis com o prejuízo das roupas, pois estes bons judeus, prudentes e pouco inclinados a despesas, têm um rasgão preparado de antamão e ligeiramente costurado que pode servir grande número de vezes. Não falta agora senão obter de Roma a condenação capital cuja alçada nos países sob seu protetorado ficava reservada aos romanos.
Jesus já cansado de fadiga e completamente moído pelos golpes, vai ser arrastado ao outro extremo de Jerusalém, á cidade alta, à fortaleza Antônia, espécie de cidadela, de onde a majestade romana assegura a ordem nessa cidade, demasiadamente inclinada á efervescência. A glória de Roma está representada por um infeliz funcionário, simples cidadão romano da classe dos cavaleiros, muito feliz por exercer este comando, que, no entanto era bem difícil por se tratar de um povo fanático, hostil e hipócrita. Pilatos é muito cioso no referente a suas atribuições, mas se sente agora acuado entre as ordens imperativas da metrópole e as ameaças insinuadas por estes judeus que tantas vezes têm mostrado estar em boas graças junto ao Imperador. Em resumo, um pobre coitado. Só tem uma religião, se é que tem uma, a do Divus Caesar (O Divino Imperador). É o produto medíocre da civilização bárbara, da cultura materialista. Mas como querer-lhe mal? Ele é o que o fizeram ser, a vida de um homem tem para ele pouca importância, sobretudo, se este não for cidadão romano. Não lhe ensinaram a compaixão e só conhece um dever: manter a ordem. (Em Roma, pensam que isto é fácil!). Todos estes judeus bulhentos, mentirosos e supersticiosos, com todos seus tabus e sua mania de se lavar por um nada, seu servilismo, insolência e aquelas pérfidas denúncias ao Ministério contra um Administrador colonial que faz tudo o que pode, tudo isto o desgosta. Despreza-os... E os teme.
Jesus, pelo contrário, (e no entanto, em que estado, aparecia diante dele, coberto de equimoses e escarros!), Jesus se lhe impunha e lhe era simpático. Irá fazer tudo o que pode para arrancá-lo ás garras daqueles energúmenos “et quaerebat dimittere illum – e esforçava-se por libertá-lo”, Jo. 19, 12 – Jesus é Galileu, enviemo-lo áquele patife que é Herodes que brinca com carriças e se julga uma delas. – Mas, Jesus despreza essa raposa e não lhe responde uma única palavra. Ei-lo novamente de volta com a turba que vocifera e aqueles insuportáveis fariseus que gritam em um tom superagudo agitando suas barbichas. – “Odiosos parlamentares! Que fiquem fora, uma vez que se julgam manchados só por entrar em um pretório romano”.
Pôncio interroga este homem que o interessa. Jesus não o despreza. Tem compaixão de sua ignorância invencível, responde-lhe com doçura e até tenta instruí-lo. – “Ah! Pensa ele, se fosse apenas essa canalha que ulula do lado de fora, uma boa sortida da coorte faria rapidamente “cum glodio” (a poder de espada) calar os mais barulhentos. Não faz muito tempo que fiz massacrar no Templo alguns galileus um tanto excitados. Sim... mas estes sinedritas sonsos já começam a insinuar que não sou amigo de Cesar e com isto não se brinca! E depois mehercle! (por Hércules!) que significam todas estas histórias de Rei dos Judeus, de Filho de Deus e de Messias?” – Se Pilatos tivesse lido as Escrituras, talvez fosse um outro Nicodemos, porque também Nicodemos é um frouxo; mas é a covardia que vai romper as barreiras. – “Este homem é, sem dúvida, um justo: fá-lo-ei flagelar (oh, lógica romana!) talvez cheguem então a conceder esses brutos alguma piedade”.
Mas eu também sou um covarde, pois se me atardo a defender esse Quirites lamentável, não é senão para retardar minha dor. “Tunc ergo apprehendit Pilatus jesum et flagellavit. – Então tomou Pilatos a Jesus e o fez flagelar” (Jo. 19, 1).
Os soldados da guarda levam Jesus para o átrio do pretório e chamam a rebate toda coorte; as distrações são raras neste país de ocupação. No entanto, várias vezes manifestara o Senhor especial simpatia para com os militares. Como admirou a confiança e a humildade daquele centurião e sua solicitude para com o servo que recebeu o benefício da cura em atenção ao centurião. (Nada me tirará a convicção de que se tratava da ordenança desse centurião da guarda do Calvário que, por primeiro, proclamará sua Divindade. A coorte parece tomada de um delírio coletivo, o que Pilatos não previra. Ali estava Satanás para lhes alimentar o ódio.
Mas, basta. Basta de discursos, pancadas somente; tratemos de ir até o fim. Despem-no e o amarram completamente nu a uma coluna do átrio. Os braços esticados para cima e os punhos amarrados no alto da coluna.
 A flagelação se faz com correias múltiplas, nas quais vão fixados, a alguma distância de extremidade livre, duas balas de chumbo ou ossinhos. (É pelo menos a este gênero de flagelo que correspondem os estigmas do santo Sudário). A lei hebraica fixara o número de golpes em 39. Mas os carrascos são legionários desregrados, e irão até o limite da síncope. Com efeito os vestígios no Santo Sudário são enumeráveis e a maioria nas costas, pois a frente do corpo estava encostada à coluna. Podem ser vistos nas espáduas, costas, rins e também no peito. As chicotadas vão ás coxas e barrigas-das-pernas; e ali, a extremidade das correias, além das balas do chumbo, contorna o membro e vem marcar seu sulco até a face anterior das pernas.
Os carrascos são dois, um de cada lado, de estatura diferente como se pode deduzir pela orintaçãos dos vestígios na Mortalha. Batem com golpes redobrados, com grande afinco. Aos primeiros golpes as correias deixam longos riscos azuis de equimoso subcutânea. Lembrai-vos que a pele já está sensibilizada, dolorida pelos milhões de pequenas hemorragias intradérmicas do suor de sangue. As balas de chumbo marcam mais. Em seguida a pele, infiltrada de sangue jorra, pedaços se destacam e ficam pendentes. Toda a face posterior não é outra coisa senão um superfície vermelha sobre a qual se destacam grandes vergões jaspeados: e, aqui e ali, em toda a parte as chagas mais profundas da balas de chumbo. São aquelas chagas em forma de halteres (as duas balas com as correias entre elas) que se imprimam no Sudário.
A cada golpe o corpo estremece com um sobressalto doloroso. Mas não abre a boca e este mutismo redobra a raiva satânica de seus carrascos. Já não é mais a fria execução de uma ordem judiciária, é um desencadeamento de demônios. O sangue escorre das espáduas até o chão ficando as grandes lajes logo cobertas dele, e quando se levantam as azorragues, se espalha em chuva até as vermelhas clâmides dos espectadores. Mas, cedo as forças do supliciado começam a desfalecer, um suor frio inunda sua fronte, a cabeça lhe gira com sensações de vertigem e náuseas, calafrios lhe passam ao longo da espinha. Suas pernas se dobram sob seu peso e, se não estivesse ligado no alto pelos punhos, teria caído naquele lago de sangue. – “Seu número está completo, se bem que não o tenham contado. Mas afinal de contas não se recebeu a ordem de o matar sob  azorrague. Deixemo-lo se refazer, ainda poderemos divertir-nos”.
- “Ah! este grande pateta tem a pretensão de ser rei, como se o pudesse ser sob as águias romanas, e ainda rei dos Judeus, o cúmulo do ridículo! Tem aborrecimentos com seus vassalos; quanto a isto não importa, seremos nós seus fiéis. Depressa um manto, um cetro”. - Fazem-no assentar sobre uma base de coluna (não é muito sólida a majestade!). Uma velha clâmide de legionários sobre as espáduas despidas conferir-lhe-á púrpura real, um grande caniço na mão direita, e estaria tudo pronto assim, se não faltasse ainda uma coroa, algo de original! Esta coroa, que nenhum outro crucificado usou, serviria para fazer reconhecê-lo até dezenove séculos depois. A um canto, um feixe daqueles arbustos que abundam nas capoeiras dos arredores da cidade. É flexível e tem compridos espinhos, muito mais compridos, mais agudos e mais duros que os da acácia. Começaram a tecer com precaução (ui! Como isto pica) uma espécie de fundo de cesta, que lhe aplicam sobre o crânio. Arrematam-lhe as bordas com uma faixa de juncos torcidos com que encerram a cabeça entre a nuca e a testa.
Os espinhos penetram no couro cabeludo e faz sangrar. (Nós os cirurgiões bem sabemos quanto um couro cabeludo sangra). Logo o crânio fica todo pegajoso de tantos coágulos, compridos filetes de sangue começam a escorrer pela testa por sob a faixa de juncos, ensopam os cabelos emaranhados e enchem a barba.
Começou a comédia da adoração. Cada um por sua vez vem dobrar o joelho diante dele com espantosa careta seguida de um grande bofetão: “Salve, rei dos judeus!”. Mas, Ele, nada responde. Seu pobre rosto abatido e pálido continua imóvel. Mas não é tão engraçado! Exasperados, os fiéis vassalos lhe escarram no rosto. “Não sabes segurar o cetro, toma”. E, pan, um grande golpe no chapéu de espinhos que se enterra um pouco mais e uma chuva de insultos. Não me lembro mais, seria de um dos legionários, ou teria Ele recebido de um dos do sinédrio? Mas vejo agora que uma forte paulada aplicada obliquamente, deixou na face direita uma horrível chaga contusa, e que seu grande nariz semita, tão nobre, ficou deformado por uma fratura da aresta cartilaginosa. Corre o sangue de Suas narinas pelo bigode. É demais, meu Deus!
Mas eis que volta Pilatos, bastante inquieto pelo prisioneiro: - “Que terão feito dele esses brutos? Ai! Preparam-no bastante bem. Se os judeus não ficarem contentes!... – Vai mostrar-lhes o prisioneiro, do balcão do pretório, em seus novos trajes reais, bastante espantado ele próprio por sentir alguma compaixão por esse farrapo humano. Mas não levara em conta o ódio: “Tolle crucifige! – Tira-o, crucifica-o (Jo. 19, 15). Ah! Que demônios. E, para ele, o argumento mais terrível: Ele se fez rei, se absolveres, não é amigo de César”. Então o covarde se entregou e lavou as mãos. No entanto, como mais tarde escreveria Sto. Agostinho, “não foste tu, Pilatos, que o mataste, mas sim os judeus, com suas afiadas línguas, e em comparação com eles tu és muito mais inocente” (Tr. Super Psalmos, Ps. 63).
Arrancaram-lhe a clâmide que já estava colada a todas seus feridas. Torna o sangue a correr. Tem Ele um grande calafrio. Fazem-no vestir de novo suas próprias roupas que logo se tingem de vermelho. A cruz está pronta. Ele mesmo coloca o lenho sobre seu ombro direito. Por que milagre de energia pode Ele ainda continuar de pé sob este fardo? Não é, na verdade toda a cruz, mas somente o grande travessão horizontal, o patibulum, que deve Ele carregar até o Gólgota, mas este mesmo pesa ainda cerca de 50 quilos. O braço vertical, o stipes, já estava plantado no Calvário.
 Começa a marcha, pés descalços, pelas ruas de solo escabroso, semeadas de pedregulhos. Preocupados, puxam os soldados pelas cordas que ligam, sem saber se conseguirá chegar Ele até o fim. Dois ladrões o seguem, com o mesmo equipamento. O percurso não é, felizmente, muito comprido, cerca de 600 metros, a colina do Calvário está apenas do lado de fora da porta de Efraim. Mas em compensação o trajeto é muito acidentado, ainda dentro dos muros. Jesus, penosamente, coloca um pé diante do outro, e com freqüência cai. Cai sobre joelhos, que em pouco tempo não são outra coisa senão uma só chaga. Os soldados da escolta o reerguem, sem muito brutalizar, pois percebem agora que poderá morrer no caminho.
Continua o travessão, em equilíbrio, sobre suas espáduas, a mortificá-las com suas asperosidades e parecem querer nelas penetrar à força. Bem sei o que significa isto: já transportei outrora no 5º de engenharia, dormentes de estrada de ferro, bem cepilhados e conheço esta sensação de penetração em uma espádua firme e sã. Mas, no caso de Jesus, o ombro estava coberto de chagas que se reabriam, se alargavam e se aprofundavam a cada passo. Está Ele esgotado em sua Túnica inconsútil, enorme mancha de sangue vai sempre aumentando e se estende até pelas costas. Cai ainda e desta vez completamente ao comprido, o travessão se lhe escapa e lhe esfola as costas. Conseguirá reerguer-se? Felizmente cruza por ali um homem, de regresso dos campos que estivera cultivando. Simão de Cirene, que, com seus filhos Alexandre e Rufo, será bem cedo um bom cristão. Os soldados o requisitam para carregar o travessão, não o pediria o bom homem, mas como fará bem! Apenas falta agora subir a ladeira do Gólgota e, penosamente, chega ao alto. Jesus cai, e se prostra no solo e a crucifixão começa.
Oh! Não é coisa tão complicada; os carrascos conhecem muito bem seu ofício. É necessário primeiro despi-lo. Quanto às roupas externas, é ainda relativamente fácil. Mas quando chega a vez da túnica, intimamente colada a suas chagas, por assim dizer a todo seu corpo, temos algo de terrível, este despojamento é simplesmente atroz. Já tiraste alguma vez um primeiro curativo colocado sobre grande chaga contusa e sobre ela ressequido? Ou experimentaste talvez sobre vós mesmo esta prova que, às vezes, necessita a anestesia geral? Se sim, podereis então saber do que se trata. Cada fio de lã está colado à superfície despida, e cada um que é retirado dá a sensação de arrancar uma das inumeráveis terminações nervosas deixadas a descoberto na chaga. Estes milhares de choques dolorosos se adicionam e se multiplicam, aumentando cada um para o seguinte a sensibilidade do sistema nervoso. Ora, não se trata aqui de lesão local, mas de quase que toda a superfície do corpo, e sobretudo daquelas lamentáveis costas. Os carrascos apressados fazem as coisas apressadamente. Talvez seja melhor assim, mas como aquela dor pungente e atroz não acarreta a síncope? É porque do princípio ao fim domina Ele toda sua paixão e a dirige.
O sangue escorre de novo. Deitam-no de costas. Será que lhe deixaram a pequena faixa que o pudor dos judeus conservara nos supliciados? Confesso que não o saberia dizer: tem isto, aliás, tão pouca importância; em todo o caso, na mortalha, ficará nu. As chagas das costas, das coxas e das panturrilhas se incrustam de poeira e de cascalho miúdo. Colocaram-no ao pé do “stipes”, com as espáduas deitadas sobre o “patibulum”. Os carrascos tomam as medidas. Um golpe inicial para preparar os buracos dos cravos, e a horrível operação começa.
Um ajudante estica os braços, com a palma da mão voltada para cima; o carrasco toma o cravo, um comprido cravo pontudo e quadrado, que perto da grande cabeça, tem 8 (oito) mm de largura, e assenta-lhe a ponta pela experiência. Uma única marretada, e o cravo já está fixado na madeira onde mais algumas outras acabarão de fixá-lo sólida e definitivamente.
Jesus não gritou, mas seu rosto se contraiu horrivelmente. E, sobretudo, vi ao mesmo tempo, seu polegar, com um movimento imperioso e violento colocar-se em oposição, na palma : o nervo mediano fora atingido. Mas então, pressinto o que experimentou Ele: uma dor inenarrável, o fulgurante que se espalhou por seus dedos, subiu como uma língua de fogo até a espádua e prorrompeu no cérebro. Bem sabemos que a dor mais insuportável que um homem possa experimentar é a do ferimento de um dos grandes troncos nervosos. Quase sempre acarreta a síncope, o que é uma felicidade. No entanto, Jesus não quis perder a consciência. Se ainda o nervo tivesse sido inteiramente decepado! Mas qual nada, sei-o por experiência, fica apenas parcialmente destruído; a chaga desse tronco nervoso continua em contacto com o cravo, e, logo em seguida, quando o corpo for suspenso ficará o nervo fortemente distendido como uma corda de violino em seu cavalete. Vibrará ele a cada abalo e a cada movimento, renovando a horrível dor. – Jesus experimentará isto, ainda durante três horas.
O outro braço foi puxado pelo ajudante; os mesmos gestos de então se repetem e as mesmas dores. Mas, desta vez, consideremo-lo bem. Ele sabe pela experiência o que o aguarda. Está agora fixado sobre o patíbulo, ao qual ficam bem encostadas as duas espáduas e os dois braços. Já tem forma de cruz; como Ele é grande!
-“Vamos, de pé”. O carrasco e seu ajudante empenham as extremidades do patíbulo e erguem o condenado, fazendo-o sentar-se, primeiro, e depois fazendo ficar de pé para, em seguida, o obrigarem a recuar até o poste, mas o fazem aos safanões que repercutem nas duas mãos cravadas (oh! Seus nervos medianos!). Com um grande esforço, de braços erguidos, pois o “stipes” não é muito alto, rapidamente, pois é bem pesado, engancham habilmente o patíbulo no alto do “stipes”, onde mais alguns pregos fixam o “titulus” escrito nas três línguas, hebraico, grego e latim.
O corpo, apoiando-se sobre os braços que se alongam obliquamente, se abaixou um pouco. As espáduas, feridas pelos açoites e pelo transporte da cruz, roçaram dolorosamente a madeira áspera. A nuca, que dominava o patíbulo, nele bateu ao passar, para se deter no alto da estaca. As agudas pontas do grande chapéu de espinhos dilaceraram o crânio mais profundamente ainda. Sua pobre cabeça pende agora para frente, porque a espessura de sua coroa impede de repousar sobre a madeira, e, cada vez que a ergue, renova as picadas.
O corpo, pendente, não está sustentado senão pelos cravos plantados nos dois carpos (oh! Os medianos!). Assim poderia sustentar-se sem mais nada. O corpo não se desloca para a frente. Mas a regra é de fixar os pés. Para isto não há necessidade de consola, basta dobrar um pouco os joelhos e estender os pés com a sola sobre a madeira do “stipes”. Uma vez que é inútil, para que dar trabalho a um carpinteiro? Não seria, sem dúvida, para aliviar o sofrimento do crucificado. O pé esquerdo está de cheio sobre a cruz. Com uma única martelada o cravo se enterra plenamente pelo meio (entre o 2º e o 3º metatarsiano). O ajudante dobra também o outro joelho e o carrasco, levando o pé esquerdo para cima do direito, que o ajudante sustenta de cheio sobre a madeira, com uma segunda martelada, perfura este outro pé na mesma região. Tudo isso se faz facilmente e, em seguida, com grandes e firmes golpes finca o cravo no lenho. Agora, obrigado, meu Deus, nada mais senão uma dor bem banal, mas o suplício apenas começa. Com dois homens, o trabalho não deve ter durado muito mais do que dois minutos, e as chagas estão sangrando muito pouco. Passam então a se ocupar dos dois ladrões e, em breve os três cadafalsos ficaram prontos e guarnecidos diante da cidade deicida.
Não escutemos todos esses judeus triunfantes que insultam seus sofrimentos. Ele já perdoou porque não sabem o que fazem. O corpo de Jesus primeiro decaiu. Após tantas torturas, para um corpo esgotado, esta imobilidade parece quase que um repouso, coincidindo com uma baixa de sua resistência vital.  Mas Ele tem sede. Oh! Não o dissera ainda: antes de se deitar sobre o pelourinho, recusara a poção analgésica, vinho misturado com mirra e com fel que lhe prepararam as caridosas mulheres de Jerusalém. Ele quer o sofrimento inteiro, e sabe que dominará. Tem sede. Sim “Adhoesit língua mea faucibus meis- aderiu minha língua a meu palato” (Ps. 21, 6). Nada comera nem bebera desde a véspera de tarde. Já é meio-dia. O suor do Getsmani, todas as fadigas durante a noite, a considerável hemorragia do pretório com todas as outras, inclusive este pouco sangue que agora corre pelas Suas chagas, tudo isso lhe subtrai boa parte de sua massa sangüínea. Tem sede. Suas feições estão abatidas, a fisionomia lívida está sulcada de sangue que se coagula por toda parte. A boca está entreaberta e o lábio inferior já começou a pender! Um pouco de saliva escorre, pela barba, misturada ao sangue proveniente do nariz contundido. A garganta está seca e abrasada, nem mais consegue deglutir. Tem sede. Neste rosto tumefacto, todo sangrento e deformado, como poderíamos reconhecer o mais belo dos filhos dos homens? “Vermis sum et non homo – Sou um verme e não homem” (Ps. 21, 6). Esse rosto seria hediondo se nele não se visse, apesar de tudo, resplandecer a majestade serena do Deus que quer salvar seus irmãos. Tem sede. Daqui a pouco o dirá para cumprir as escrituras. E um grande idiota de soldado disfarçando a própria compaixão sob zombarias embebe uma esponja de “posca” acidulada (acetum, dizem os Evangelhos) e lhe apresentará na extremidade do dardo. Será que vai beber pelo menos um gota? Já se disse que o fato de beber determina, entre estes pobres supliciados, uma síncope mortal. Como após ter recebido a esponja, poderá Ele então falar ainda duas ou três vezes? Não, não, Ele morrerá à sua hora. Tem sede.
E isto apenas começara. Mas ao cabo de uns poucos instantes, produz-se um fenômeno estranho. Os músculos dos braços se enrijeciam espontâneamente, por uma contração que se irá acentuando cada vez mais; os deltóides, os bíceps estão entesados e salientes, os dedos se crispam. Cãibras!tetania, quando as cãibras se generalizam, e eis que ela apareceu. Os músculos do ventre se enrijecem como ondas congeladas, depois os intercostais, em seguida os músculos do pescoço e os músculos respiratórios. A respiração tornou-se pouco, pouco mais curta, superficial. As costelas já elevadas pela tração dos braços, ainda mais se sobrelevam; o epigástrio se cava e também o mesmo acontece com as covas das clavículas. O ar penetra sibilando, mas quase não sai mais. Respira só no alto, inspira um pouco e não mais consegue expirar. Tem sede de ar. (Parece um asmático em plena crise). O rosto pálido pouco a pouco fica corado, vermelho, passa ao violeta púrpura e em seguida ao azul. É a asfixia. Os pulmões fartos de ar não conseguem esvaziar-se. A testa se cobre de suor, os olhos fora das órbitas se reviram. Que dor atroz deve martelar seu crânio! Vai morrer. Tanto melhor! Já não sofreu então Ele bastante? Quem ainda não sentiu, pouco ou muito esta dor progressiva a aguda em uma barriga de perna, entre duas costelas, um pouco por toda a parte? É necessário deixar tudo para distender e alongar o músculo contraído. Mas olhemos! Eis agora, nas coxas e pernas, as mesmas saliências monstruosas, rígidas, e os dedos dos pés que se crispam também. Ir-se-ia um ferido tomado pelo tétano, presa a estas terríveis crises, que não pode mais esquecer. É o que chamamos a
Mas, não, sua hora ainda não chegou. Nem a sede, nem a hemorragia, nem a asfixia, nem a dor terão poder sobre Deus Salvador e embora morra com estes sintomas, não morrerá verdadeiramente a não ser porque o quis, “habens in potestate ponere animam suam et recipere eam – tendo o poder de depor sua vida e de retomá-la”. (Sto. Agostinho, Trat. sobre os Salmos, Salmo 63, ad vers. 3). E será por isto que Ele ressucitará. Aleluia!
Que estará agora acontecendo? Lentamente, com um esforço sobre-humano, tomou ponto de apoio sobre o cravo dos pés, sim! sobre as duas chagas. Os tornozelos e os joelhos, pouco a pouco, se estendem e o corpo, a arrancões, se ergue, aliviando assim a tração dos braços (tração que era de mais de 90 quilos para cada mão). Então, eis que o fenômeno diminui por si mesmo, a tetania regride, os músculos se distendem, pelo menos os do peito. A respiração torna-se mais ampla e mais profunda, os pulmões se desenfartam e, dentro de pouco, o rosto retoma sua palidez anterior.
Por que todo este esforço? É que nos quer falar: “Pater dimitte illes – Meu Pai, perdoa-os” Lc. 23, 34. Oh, sim, que nos perdoe a nós que somos seus carrascos. Mas, ao cabo de um instante, seu corpo começa a descer de novo... e a tetania vai começar. Cada vez que falar (foram-nos conservados pelo menos sete dessas frases) e cada vez que quiser respirar, lhe será necessário reerguer-se, para poder tomar hálito, mantendo-se de pé sobre o cravo dos pés. E cada movimento retine em suas mãos em dores inenarráveis (oh, seus nervos medianos!). É a asfixia periódica do infeliz que fosse estrangulado por alguém que lhe permite retomar o fôlego antes de morrer, para o tornar a sufocar, várias vezes. Não poderá Ele escapar a essa asfixia e não ser por um momento, ao preço de sofrimentos atrozes e por um ato voluntário. E isso vai durar três horas. Mas, morrerei então, meu Deus!
Ali estarei eu ao pé da cruz, com sua Mãe e João e as santas mulheres que o serviam. O centurião, um pouco à parte, observa com uma atenção já agora respeitosa. Entre duas asfixias se ergue Jesus e fala: “Filho, eis tua Mãe”. Oh, sim querida Mamãe, que desde esse dia nos adotaste! Pouco depois o ladrão consegue que lhe abram o paraíso. Mas quando então morrereis vós, Senhor?
Bem o sei, a Ressurreição Pascal vos espera e vosso corpo não apodrecerá como os nossos. Está escrito: “Non dabis sanctum tuum videre corruptionem – Não permitirás teu Santo experimentar a corrupção” (Sl. 15, 10). Mas, meu pobre Jesus (perdoai o cirurgião), todas as vossas chagas estão infectadas e, pelo menos, essas se corromperão em pouco tempo. Vejo distintamente ressumar uma linfa amarelada e transparente que se reúne nos pontos inclinados em uma crosta amarelada. Nas mais antigas já se vão formando falsas membranas, que segregam um pus seroso. Está também escrito: “Putruerunt et corruptae sunt cicatrices meae – Minhas chagas se infeccionam e supuraram”, (Sl. 37, 5).
Um exame de moscas terríveis, grandes moscas de cor verde e azul, como se costumam ver nos matadouros de carneiros, turbilhonam em volta de seu corpo; e bruscamente se abatem sobre uma ou outra de suas chagas, para sugar-lhe a serosidade e ali depositar seus ovos. Elas se encarniçam sobre o rosto; impossível repeli-las. Por felicidade, depois de algum tempo, o céu se obscurece, o sol se esconde, faz de repente muito frio e estas filhas de Belzebu abandonam pouco a pouco o terreno.
Lentamente se passaram três horas. Enfim! Jesus luta sempre. De vez em quando, se ergue. Todas as dores, a sede, as cãibras, a asfixia e as vibrações de seus dois nervos medianos não conseguiram arrancar-lhe um único gemido. Mas, se seus amigos lá estão, seu Pai, (e esta será a última provação, seu Pai parece tê-lo abandonado. “Eli, Eli lamma sabachtani?   – Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Mt. 27, 46); (Mc. 16, 34; Salmo 21, 1).
Agora, sabe que se vai. Brada: “consummatum est – Está terminado” (Jo. 19, 30). A taça está agora vazia, terminara sua missão. Depois, erguendo-se de novo e como que para nos fazer compreender que morria por Sua própria e espontânea vontade “iterum chamans voce magna – exclamando de novo com voz potente”. (Mt. 21, 50): “Meu Pai, diz Ele, em Vossas mãos deposito minha alma” – (Lc. 23, 46), (habens in potestateponere animam suam). Morreu quando quis. E que não mais me falem de teorias filosóficas!
Laudato si Missignore per sora nostra morte corporale” – “Louvado sejais Senhor pela nossa irmã a morte corporal!” (Cântico das criaturas São Francisco de Assis). Ó, sim, Senhor, sede louvado, por vos terdes dignado morrer. Porque já não mais vos podíamos acompanhar. Agora está tudo bem. Em um último suspiro, lentamente vossa cabeça se inclinou pendente em direção a mim, direita diante de vós, vosso queixo sobre o esterno. Vejo agora bem de frente vossa fisionomia distinta, serena de novo, que apesar de tantos horrendos estigmas ilumina a majestade muito doce do Deus que sempre ali está. Prostro-me de joelhos diante de vós, beijando vossos pés perfurados, de onde o sangue corre ainda, indo se coagular nas extremidades. A rigidez cadavérica vos invadiu brutalmente, de vós se apoderou a rigidez como de cervo cansado pela carreira. Vossas pernas estão duras como o aço... e escaldantes. Que temperatura inaudita vos causou esta tetania?
A terra tremeu, que me importa? E o sol se eclipsou. José foi requisitar vosso corpo a Pilatos, que não o recusará. Odeia esses judeus que o forçaram a vos assassinar. Aquele letreiro que ainda está por sobre vossa cabeça, proclama bem alto seu rancor: “Jesus, Rei dos judeus”, e crucificado como um escravo! Eis que parte o centurião para fazer seu relatório, depois de vos ter proclamado verdadeiro filho de Deus. Logo que voltar José com a autorização, vos faremos descer, o que, uma vez despregados os pés, não será tão difícil. José e Nicodemos desengancharão o travessão do “stipes”. João, vosso bem amado vos levará pelos pés, dois outros, como um pano enrolado em forma de corda, vos sustentaremos as costas. A mortalha já está pronta, sobre uma pedra ali pertinho, defronte ao sepulcro, e lá, com mais comodidade despregaremos vossas mãos. Mas, quem vem lá?
Ah sim, os judeus; devem ter pedido a Pilatos que limpasse a colina desses cadafalsos que ofendem a vista e manchariam a festa de amanhã. Raça de víboras, que filtrais o mosquito e engolis o camelo! Soldados quebram com fortes golpes, dados com barras de ferro as coxas dos ladrões. Ficam agora lamentavelmente pendurados e como não mais poderão erguer-se sobre as pernas, a tetania e a asfixia acabarão com eles bem cedo.
Mas isso não será necessário para vós! “Os non comminuetis ex eo – Não lhe quebrareis nenhum de seus ossos” (Jo. 19, 36); Êxodo, 12, 46; Num. 9, 12. Deixai-nos pois em paz, não vedes que Ele já está morto? – Sem dúvida dizem eles. Mas que idéia teve um deles? Como um gesto trágico e preciso erguer a haste da lança e, com um único golpe oblíquo, mergulhando-a profundamente pelo lado direito. Oh! Por quê? “E logo, da chaga saíram sangue e água”. (Jo. 20, 34). João bem que viu e eu também, e não saberíamos mentir: uma grande golfada de sangue líquido e negro, que jorrou sobre o soldado a agora corre lentamente pelo peito, ali se coagulando em camadas sucessivas. Mas, simultaneamente, muito mais visível nos bordos do fluxo, correu um líquido claro e límpido como água. Vejamos, a chaga está abaixo e por fora do mamilo (5º espaço), o golpe foi oblíquo. É, portanto, o sangue da aurícula direita, e a água provêm do pericárdio. Mas então, meu pobre Jesus, vosso coração estava comprimido por esse líquido e tínheis também, além de tudo o mais, esta dor angustiosa e cruel do coração apertado num torno!
Não tinha sido bastante o que víramos? Foi então para que o soubéssemos que este homem cometeu sua estranha agressão? Talvez também os judeus receassem que não estivésseis morto, mas apenas desfalecido; vossa ressurreição pedia este testemunho. Obrigado, meu soldado, obrigado, Longinos, morrerás um dia como mártir cristão.
E agora leitor, agradeçamos a Deus, que me deu forma de escrever tudo isto até o fim, não sem lágrimas! Todas estas dores espantosas que acabamos de viver, Ele, durante toda a vida, já previra, premeditara e quisera em Seu amor, para resgatar nossas faltas. “Oblatus est quia ipse voluit – Foi entregue porque Ele próprio o quis”. (Isaias. 53, 7). Dirigiu toda sua Paixão sem evitar uma única tortura, aceitando suas conseqüências fisiológicas, mas sem ser dominado por elas. Morreu quando, como e porque quis.
Jesus está em agonia até o fim dos tempos. É justo, é bom sofrer com Ele e, quando nos envia a dor, agradecer-lha, e associá-la à sua. É necessário a nós, como escreve São Paulo, completar o que falta á Paixão de Cristo, e, como Maria, sua Mãe aceitar alegremente, fraternalmente nossa Compaixão.
      Ó Jesus, que não tivestes compaixão de Vós mesmo, que sois Deus, tende piedade de mim que sou pecador!

Laus Christo


FONTE:
Livro: A paixão de Jesus Cristo segundo o cirurgião
Título original em francês: La Passion de N. S. Jésus Christ Selon Le Chirurgien

Edições Loyola
São Paulo 1996

Autor: Pierre Barbet - Cirurgião do Hospital Saint Joseph de Paris

REIMPRIMATUR: Belo Horizonte, 3 de fevereiro de 1965 - João, Arcebispo Coadjutor

Tradução: Cônego José Alberto de Castro Pinto

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


quarta-feira, 13 de abril de 2011

FRATERNIDADE E NATUREZA


Por Denis Lerrer Rosenfield

Com grande alarde, a CNBB lançou um documento intitulado Fraternidade e a Vida no Planeta como orientação da Campanha da Fraternidade de 2011. Tratando-se de um documento teológico-político, sua preocupação central consiste em influir no atual debate sobre as relações entre civilização moderna e meio ambiente. Mais especificamente, seu objetivo reside em participar diretamente da discussão atual sobre a revisão do Código Florestal. Não estamos diante de uma preocupação religiosa politicamente neutra, mas que obedece a diretrizes contempladas nas pastorais da Igreja, nos ditos movimentos sociais e na doutrina da Teologia da Libertação.

Em manifestações, aliás, muito sensatas, de alguns altos dignitários da Igreja, aparece uma preocupação muito genuína com a preservação ambiental, sem ranços ideológicos. Cuidados relativos à coleta seletiva de lixo, contra os desperdícios de água, a poluição de rios e do ar e o uso abusivo de agrotóxicos, por exemplo, entram nessa linha de conduta.

Essa é, no entanto, a apresentação pública, em muito distinta do que consta no documento, eivado de ranços contra o capitalismo, a propriedade privada, o lucro e o agronegócio. Convém, preliminarmente, ressaltar que foi graças ao capitalismo e ao agronegócio que a sociedade atual veio a produzir abundantemente alimentos em escala planetária e a baixo custo. Nunca tantos comeram e jamais foram tão boas as condições de vida.

Os países que aboliram a propriedade privada e 'produziram' sem o lucro foram os que sucumbiram à miséria. A URSS abandonou à morte milhões de seus cidadãos por falta de comida e pela desorganização completa da agricultura. A China de Mao seguiu o mesmo caminho, com camponeses morrendo de fome nas estradas. Os admiradores atuais de Cuba, muitos dos quais compartilham os pressupostos da Teologia da Libertação, nada têm a dizer de um partido que nem consegue produzir alimentos para a sua população. Outro representante do 'socialismo', Hugo Chávez, está conduzindo seu país à bancarrota, também com a desorganização completa da agricultura e da pecuária.

Se tivéssemos de caracterizar a ideologia do documento o qualificaríamos como uma mistura de ludismo e marxismo. Ludismo porque corresponde a uma corrente política e ideológica inglesa do século 19 que recusava toda e qualquer modernização do processo produtivo, no caso, industrial, pela destruição de máquinas, cuja inovação não era aceita. Marxismo porque adota as categorias dessa corrente ideológica, propugnando uma via anticapitalista, que não estaria mais orientada pelas relações de mercado alicerçadas no lucro e nos contratos. Desta última resgata também a ideia socialista, que ganha uma nova denominação, a de uma sociedade 'solidária', não consumista, não capitalista, apoiada na 'vida', e não na ganância. Mudou de denominação por conveniências retóricas.

Assim, a CNBB postula que os alimentos produzidos para o mercado, sob a forma de 'commodities', sejam caracterizados como produtos de um mercado voltado para o 'lucro', que não visa à 'disponibilização de alimentos para todas as pessoas'. Prossegue em suas diatribes criticando um mercado 'dominado por poucas empresas que monopolizam o mercado internacional, impondo preços segundo suas conveniências'. Mas é obrigada a reconhecer que esse processo, baseado em 'distorções', 'se reflete nos preços relativamente baixos dos alimentos'. Ou seja, na verdade, é o mercado que produz alimentos abundantes e a baixos preços, o que contradiz sua tese de que a escassez seria a resultante desse processo.

O documento retoma a tese do MST e da Comissão Pastoral da Terra de que o agronegócio termina prejudicando e excluindo a agricultura familiar. Ao contrário, porém, o fato é que o excedente da agricultura familiar é vendido no mercado e em alguns setores, como fumo, aves e suínos, há toda uma rede de relações entre o agronegócio e a agricultura familiar, denominada 'sistema integrado de produção'. Na verdade, a CNBB adota a postura dos assentamentos da reforma agrária, identificando-os com a agricultura familiar, o que é um equívoco, pois eles não possuem títulos de propriedade, não se voltam para o mercado e estão apoiados na economia de subsistência, a qual, aliás, nem conseguem atingir. Vivem de subsídios governamentais como o Bolsa-Família, o que significa dizer: à custa do contribuinte.

Todo o setor da agropecuária e do agronegócio em geral é tido como praticante de 'crimes ambientais', como se esse fosse o seu costume. Evidentemente, a prática agrícola, como ocorre em qualquer lugar do mundo, transforma a natureza, tendo em vista a produção de alimentos. Se assim não fosse, a humanidade morreria de fome. Há uma clara confusão entre desmatar por desmatar, sem nenhuma preocupação agropecuária, e a atividade propriamente agrícola, que também conserva a natureza. Agricultura e natureza marcham de mãos dadas. Se não for assim, ambas acabam perdendo. O agricultor ou a empresa que não conserva a natureza dá um tiro no próprio pé.

A CNBB apoia-se numa concepção religiosa segundo a qual tudo o que existe na natureza é resultado da criação divina, que, enquanto tal, deve ser preservada. Trata-se de 'cultivar' a 'criação'. O ambientalismo estaria, nesse sentido, fundado numa cosmovisão religiosa. Eis por que é defendida a ideia de que os comportamentos que contrariam essa cosmovisão devem ser 'corrigidos', por serem 'pecaminosos', por atentarem precisamente contra a 'criação divina'. Ou seja, a Igreja assume a política dos que sabem o que é o 'correto' comportamento humano, devendo adotar medidas que o implementem. A correção do comportamento humano seria empreendida pela 'tirania dos bons', dos 'virtuosos'. Isso significa que todo aquele que advoga pela atualização do Código Florestal seria pecador.
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28 de março de 2011

terça-feira, 5 de abril de 2011

“O VATICANO II: Uma história jamais escrita” ( completo )


A respeito do livro com o título em epígrafe, o autor, Prof. Roberto de Mattei, vice-presidente do Centro Nacional de Pesquisas da Itália e catedrático da Universidade Européia de Roma, concedeu substanciosa entrevista exclusiva a Catolicismo. Na obra, ele descreve com cores vivas e minúcias densas de significado o confronto entre a ala progressista e a ala conservadora — com a vitória da primeira — bem como as profundas e graves conseqüências do Concílio Vaticano II para a vida da Igreja e da sociedade, que se projetam até os dias de hoje.
Catolicismo — Obrigado professor por conceder esta entrevista. Sabemos que o Sr. está muito ocupado devido à polêmica que surgiu com a publicação de seu último livro O Vaticano II: Uma história jamais escrita.
Prof. de Mattei

“Foram de muita utilidade as cartas de D. Helder e os relatórios do Dr. Murillo, que descrevem os contatos do Prof. Plinio e sua equipe no Concílio”.
Prof. de MatteiDe fato, esse livro tem suscitado amplo debate, no qual intervieram apologetas de renome aqui na Itália, provavelmente pouco conhecidos no Brasil, como Francesco Agnoli, Mario Palmaro, Alessandro Gnocchi, Corrado Gnerre, os quais se têm expresso em favor das teses que sustento. Enquanto Alberto Melloni, o atual líder da progressista e muito conhecida Escola de Bolonha, assim como outros intelectuais moderados como Andrea Tornielli, o vaticanista do quotidiano “Il Giornale”, assumiram uma posição contrária. Aliás, antes mesmo da tradução de meu livro para outras línguas, ele já está alcançando repercussão em muitos outros países, devido à reprodução em sites e blogs católicos de artigos que se ocupam dele, como um recente post do conhecido vaticanista Sandro Magister.
Catolicismo — E o público brasileiro vai poder beneficiar-se de sua leitura?
Prof. de Mattei — Creio que sim. Mas vai depender das negociações de minha editora, a Lindau, de Torino, com casas editoras de língua portuguesa. Uma das vantagens para o editor em português consistirá em que parte da documentação já está no idioma português.

Catolicismo — Justamente, o Sr. Andrea Tornielli, em sua recensão, admirou-se pelo fato de que há toda uma história “brasileira” do Vaticano II.
Prof. de Mattei — A bibliografia sobre o Concílio Vaticano II é super-abundante. Mas uma das principais fontes, para entender tudo o que sucedeu a latere da assembléia conciliar, influindo sobre ela, são os testemunhos dos participantes e dos espectadores, em particular os diários, as correspondências, as memórias. Nesse sentido, foram para mim de muita utilidade as cartas de D. Helder Câmara, recentemente publicadas, assim como os relatórios do Dr. Murillo Maranhão Galliez, que descrevem os contatos que mantiveram o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e sua equipe de 14 colaboradores, na primeira fase do Concílio.
Tais contatos contribuíram possantemente para a constituição do Piccolo Comitato de Padres conciliares de orientação antiprogressista, que depois ampliou-se no Coetus Internationalis Patrum e teve grande importância nos debates. E, inegavelmente, as almas do Coetus foram D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antonio de Castro Mayer, enquanto D. Marcel Lefebvre assumiu apenas o papel de figura de proa.


Todos os historiadores concordam em que D. Helder foi um dos principais orquestradores da ala progressista durante o Concílio

“D. Helder exercia a função de “eminência parda” do que ele chamava o “sagrado complô”. Além disso, organizava reuniões com teólogos progressistas”


Catolicismo — Pode-se falar, então, de um embate entre D. Helder, de um lado, e de D. Sigaud e D. Mayer do outro?
Prof. de Mattei — Todos os historiadores concordam em que D. Helder — o qual, por sinal, nunca tomou a palavra na aula conciliar — foi um dos principais orquestadores da ala progressista. Porque foi ele que, graças a sua posição de vice-presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano, conseguiu arrastar os bispos latino-americanos, em geral bastante conservadores, para uma aliança com as conferências episcopais progressistas da Europa central (França, Alemanha, Bélgica e Holanda).
D. Helder era muito chegado ao Cardeal Suenens, ao qual se referia em suas cartas com o nome-código de “padre Miguel”, e que ele considerava “o chefe mundial do progressismo”. Os dois encontravam-se todos os dias e dividiam o trabalho entre si: Suenens na aula conciliar (ele era um dos quatro Moderadores, além de membro da Comissão de coordenação) e D. Helder atuava nos corredores, onde exercia a função de “eminência parda” do que ele chamava o “sagrado complô”. Além disso, organizava conferências e reuniões na Domus Mariae, a casa religiosa onde residiam os bispos brasileiros, convidando teólogos progressistas como Hans Küng. O sacerdote belga altermundialista François Houtard (que, aliás, confessou recentemente ter abusado sexualmente de um sobrinho...) diz numa carta ao Pe. Oscar Beozzo (cujo livro sobre a Igreja do Brasil no Concílio traz informações preciosas) que a Domus Mariae acabou funcionando “como lugar de reunião e quartel geral” do Ecumênico, a articulação progressista de conferências episcopais dos cinco continentes para influenciar a marcha do Concílio.

Catolicismo — Então, o embate em que se empenharam bispos brasileiros, acabou envolvendo o conjunto dos Padres conciliares?
Prof. de Mattei — O Concílio não durou três meses, como havia calculado ingenuamente João XXIII, nem se desenvolveu na atmosfera de feliz consenso que ele imaginara, mas foi ocasião de entrechoques dramáticos. Se nos limitássemos a fazer uma história “oficial” dele, baseada no resultado das votações, dever-se-ia negar a existência de uma luta interna entre posições opostas, visto que os documentos conciliares foram aprovados por maiorias esmagadoras. Mas, na realidade, nenhum Concílio registrou mais tensões e conflitos entre grupos opostos do que o Vaticano II.
Sem negar essa evidência, os historiadores apresentam o Vaticano II como o choque entre uma “maioria” progressista e uma “minoria” conservadora, derrotada. Na realidade, o confronto foi entre duas minorias que, já em 1963, Mons. Gérard Philips — (professor de dogmática na Faculdade de Teologia da Universidade de Lovaina e secretário adjunto da Comissão teológica do Concílio — descrevia como duas “tendências” opostas da filosofia e teologia do século XX. Na opinião de Philips, uma estava mais preocupada em permanecer fiel aos enunciados tradicionais, e a outra mais atenta à difusão da mensagem evangélica junto ao homem contemporâneo. Para essa segunda tendência (cujos máximos expoentes — Chenu, Congar, de Lubac, etc. — tinham sido repetidamente censurados e condenados por Pio XII), o Concílio representava uma oportunidade extraordinária, porque a natureza dos debates permitia que ambas as posições se apresentassem num plano de paridade ideológica, cujo resultado ficava confiado às regras do jogo parlamentar.

Catolicismo — Mas, se o resultado das votações foi esmagadoramente favorável a essa tendência progressista, por que o Sr. afirma que o embate se deu entre duas minorias?
Prof. de Mattei — No Concílio, criaram-se grupos, definidos pela mídia como uma direita, uma esquerda e um centro. O uso dessa terminologia, ainda que imprópria, não deve surpreender e pode ser aceito por comodidade. Um dos maiores historiadores dos Concílios, o teólogo alemão Karl Joseph von Hefele, relata que, no ano 325, no Concílio de Nicéia, os bispos de doutrina ortodoxa formavam, com Santo Atanásio e seus seguidores, a direita. Ario e seus partidários, que negavam a divindade de Cristo, representavam a esquerda; enquanto o centro-esquerda era ocupado por Eusébio de Nicomédia e o centro-direita por Eusébio de Cesaréia. A posição verdadeira e autenticamente católica não era o tal centro dos dois Eusébios, que formavam uma “terceira posição” entre a ortodoxia e a heresia; mas era a encarnada pela direita de Santo Atanásio, acusado por seus adversários de extremismo e fanatismo. Foi, então, Santo Atanásio — autor do Símbolo da Fé que ainda hoje professamos — quem traçou a História da Igreja nos séculos futuros.






Alguns momentos do Concílio apresentaram analogias com lances 
ocorridos nos Estados Gerais, e suas conseqüências durante a Revolução Francesa 

“Os historiadores apresentam o CV II como o choque entre “maioria” progressista e “minoria” conservadora. Mas o confronto foi entre duas minorias”

Catolicismo — E o Sr. afirma que sucedeu algo similar no Vaticano II?
Prof. de Mattei — No interior da aula conciliar, entre as duas minorias, a conservadora e a progressista, oscilava, como acontece sempre, a massa daqueles que resistiam em tomar partido. Qual era a posição desse centro majoritário? Não é possível saber pelos discursos na aula conciliar, nem pelas apresentações nas comissões, porque apenas uma minoria usou da palavra. Mas pode-se conhecer pelas sugestões e propostas de tema de discussão que, na preparação do Concílio, o episcopado mundial, os superiores religiosos e as universidades católicas enviaram ao Vaticano, em resposta a uma consulta proposta por João XXIII.
A maioria das respostas não pede uma mudança radical, mas sim novas definições doutrinárias — a definição do dogma de Mediação Universal de Maria ou da Realeza de Cristo, por exemplo — e a condenação dos erros doutrinários que grassavam entre os fiéis (notadamente do comunismo).
Pode-se fazer uma analogia entre os vota (nome latino dessas sugestões) dos Padres conciliares e os famosos cahiers de doléances redigidos na França, com vistas aos Estados Gerais de 1789. Antes da Revolução Francesa, nenhum cahier de doléances propunha subverter as bases do Antigo Regime, mas apenas uma moderada reforma das instituições, a supressão de alguns impostos, etc. Mas, de modo inesperado, os Estados Gerais desfecharam na queda da monarquia.
Analogamente, o Concílio não atendeu aos pedidos que emergiam dos vota, mas secundou as reivindicações da minoria progressista que, desde o começo, conseguiu colocar-se à testa da assembléia e orientar suas decisões.

Catolicismo — E como conseguiram essa liderança?
Prof. de Mattei — Também aqui repete-se o que aconteceu na Revolução Francesa: os dias decisivos foram os primeiros, nos quais a legalidade foi quebrada. Em Versalhes, isso aconteceu no dia 17 de junho de 1789, quando os Estados Gerais transformaram-se em Assembléia Constituinte. Em Roma, o dia decisivo foi o 13 de outubro de 1962, apenas dois dias após a inauguração, quando, a pedido do Cardeal Liénart, a eleição dos membros das comissões conciliares foi suspensa, para que as conferências episcopais apresentassem os candidatos. A partir desse momento, elas entraram como grupos organizados na dinâmica conciliar.
Mas, detrás das conferências episcopais havia outros grupos organizados de bispos e teólogos, como o tal Ecumênico já mencionado, que formaram um partido abertamente anti-romano, porque via na Cúria pontifícia e na teologia ensinada nas universidades romanas os inimigos a serem abatidos.
A rede de relações desse setor progressista, que pré-existia ao Concílio, era forte, ramificada, e incluia, além das cúpulas das conferências episcopais, algumas ordens religiosas de “vanguarda” e grupos linguísticos. Incluía sobretudo laboratórios ideológicos, como os de Cuernavaca, no México, de Bolonha, na Itália, e de Lovaina, na Bélgica.

Catolicismo — Mas, do lado conservador, não havia algo parecido?
Prof. de Mattei — Nem um pouco! Os bispos e teólogos fiéis a Roma reagiram muito tardiamente e sem a habilidade estratégica de seus adversários. Segundo uma pesquisadora americana, Melissa Wilde, a minoria progressista prevaleceu graças a sua melhor estratégia e organização.

Catolicismo — Mas o que estava em jogo era atrair para seu lado a maioria centrista...

Prof. de Mattei — Segundo essa mesma pesquisadora, o clima que caracterizou as primeiras fases do debate conciliar foi uma “efervescência coletiva”. Trata-se de uma expressão cunhada pelo sociólogo Durkheim para caraterizar o estado das pessoas quando crêem ter sido transportadas para um mundo completamente diverso daquele que elas têm diante dos olhos. É um estado eufórico de “entusiasmo religioso” bem conhecido dos historiadores. As cartas de Dom Helder oferecem um exemplo típico desse clima de auto-exaltação que é atribuído, de modo simplista, à ação do “Espírito Santo”. Foi já na primeira sessão que o “espírito do Concílio” passou a ser uma das principais motivações dos Padres conciliares e a base de grande número de propostas.

Capa da obra do Prof. de Mattei

“A minoria progressista conseguiu não tanto mudar a doutrina da Igreja, mas substituir sua imagem hierárquica pela imagem de uma assembléia democrática”

Catolicismo — Houve algum episódio particular que tivesse sido marcado por esse ambiente de euforia revolucionária?
Prof. de Mattei — Sim. Por exemplo, na sessão de 30 de outubro de 1962, durante o debate sobre a Liturgia, tomou a palavra o Cardeal Ottaviani, que era detestado pelos progressistasNova Teologia. No calor de seu discurso, ele passou dos dez minutos regulamentares e o cardeal Alfrink, que presidia a sessão, tocou a campainha; Ottaviani, que era idoso e um pouco surdo, continuou a falar. Alfrink deu, então, ordem para cortar abruptamente o microfone. Parte da assembléia aplaudiu calorosamente a humilhação infligida a um dos principais colaboradores do Papa João XXIII! Dom Helder viu aflorar, nesse aplauso, o “espírito do Concílio”... por ser o prefeito do Santo Ofício e, como tal, o responsável pela condenação dos escritos de alguns corifeus da
Outro caso ocorreu durante a fase que os progressistas denominaram “a semana preta”, na terceira sessão, em 1964. O ambiente estava acalorado, porque Paulo VI havia imposto uma “Nota Explicativa Prévia” ao texto sobre a colegialidade, que limitava o alcance do mesmo, e tinha irritado profundamente os progressistas, que desejavam transformar a Igreja numa espécie de república parlamentar. Dois dias depois da leitura dessa “Nota Prévia”, foi anunciado que, a pedido dos conservadores e para respeitar o regulamento, o esquema sobre a liberdade religiosa, que tinha sofrido muitas modificações, não iria ser votado senão na sessão do ano seguinte. Desencadeou-se, então, uma reação furiosa. Na basílica de São Pedro muitos Padres conciliares abandonaram seus lugares para reunir-se e discutir em pequenos conciliábulos. O correspondente do diário parisiense “Le Monde”, Henri Fesquet, escreveu que se ouvia bispos exclamar: “Fomos traídos!” Um americano, referindo-se aos conservadores (ou talvez aos Moderadores!), deixou escapar um dos piores insultos da língua inglesa: “Bastardos!” Os jornais aludiram à “revolta” dos bispos americanos. Pouco depois, na mesma “congregação” (assim eram chamadas as sessões plenárias diárias, na basílica), tomou a palavra Dom De Smedt, um progressista notório, que era o relator do esquema sobre a liberdade religiosa. Quando afirmou que “a Igreja deve ser livre dos poderes políticos” — propunha, na realidade, uma renúncia ao ideal de Cristandade — ouviu-se um aplauso frenético. Dois Moderadores, na mesa da presidência, uniram-se aos aplausos! O ambiente no fim da sessão assemelhava-se à conclusão de um comício político.

Catolicismo — Num tal clima de exaltação era, de fato, mais fácil para a minoria progressista extremada obter da maioria mole tudo o que desejava.
Prof. de Mattei — Não, o jogo era mais subtil. As reivindicações da ala “jacobina” (para exprimir-me em termos da Revolução Francesa) foram rejeitadas pela oposição da minoria conservadora que, aos poucos, foi-se organizando. Os documentos não corresponderam às expectativas dos progressistas mais audazes e foi graças a compromissos obtidos in extremis que é possível ao Papa hoje dizer que os documentos devem ser lidos à luz da Tradição.
Mas a imagem que o mundo formava da Igreja mudou radicalmente. Quando, no dia 12 de outubro de 1963, D. Franiæ, bispo croata de Split, propôs que, no esquema De Ecclesia, ao novo título de Igreja “peregrina” fosse acrescentada a denominação tradicional de “militante”, sua proposta foi rejeitada. A imagem que a Igreja deveria oferecer de si mesma ao mundo não era aquela da luta, da condenação, da controvérsia, mas do diálogo, da paz, da colaboração ecumênica e fraterna com todos os homens. A minoria progressista conseguiu não tanto mudar a doutrina da Igreja, mas substituir a imagem sacral e hierárquica da Esposa de Cristo pela imagem de uma assembléia democrática, aberta às novidades e inserida na História.
O cardeal húngaro Josef Mindszenty, preferiu ser excluído, desprezado, perseguido, do que renunciar à proclamação da verdade, ao combate às falsas doutrinas como era o caso da doutrina comunista

“Historiador não é hagiógrafo. É do ponto de vista histórico que eu exponho juízos sobre Pio XII, João XXIII, Paulo VI e isso não deveria escandalizar ninguém”


Catolicismo — Mas a Igreja, de fato, está inserida na História...

Prof. de Mattei — Não há dúvida. Mas de uma maneira inteiramente diferente daquela que os Padres conciliares progressistas a entendiam, num clima psicológico de otimismo, e mesmo de euforia, que vigorava no início dos anos 60.
Três ícones brilhavam então no firmamento internacional, encarnando esse clima de otimismo; Nikita Krushev, primeiro ministro da União Soviética; Ângelo Roncalli que, desde 1958, era o Papa João XXIII; e desde 1961 John F. Kennedy, primeiro presidente católico dos Estados Unidos.
Em abril desse mesmo ano, o astronauta soviético Gagarin realizou o primeiro vôo no espaço, sugerindo a abertura de nova época de triunfo da ciência. Embora já em agosto de 1961, tivesse sido iniciada a construção do Muro de Berlim...
A influência que o comunismo exercia sobre o mundo, mais do que política e militar, era cultural e psicológica. O marxismo dominava nos ambientes acadêmicos e na mídia, os quais veiculavam conceitos típicos dessa filosofia materialista e evolucionista, como “senso da História”, “curso dos tempos”, “libertação e repressão”. Tratava-se de uma visão dialética, que se exprimia nas novas “palavras-talismã” (a expressão, por sinal, é de Plinio Corrêa de Oliveira) lançadas pela propaganda comunista: diálogo, “coexistência pacífica”, “desenvolvimento” e “emancipação” dos povos. A ideologia subjacente era a do progresso, entendido como marcha irreversível e ascensional da humanidade para atingir uma “felicidade” social apresentada como a transposição do paraíso celeste para a Terra.


Catolicismo — E qual era a posição da Igreja nesse contexto?
Prof. de Mattei — No curso de sua história, a Igreja havia se dirigido ao mundo com a linguagem dos confessores destemidos, dos doutores inflexíveis, dos mártires intransigentes no testemunho da fé, das virgens imaculadas na sua fidelidade ao desponsório com Cristo. Esses homens e mulheres haviam preferido ser excluídos, desprezados, perseguidos, condenados à morte, do que renunciar à proclamação da verdade, ao combate às falsas doutrinas. Era a via indicada por confessores da fé como o Cardeal Stepinac, eliminado pelos comunistas croatas nas vésperas do Concílio, e o cardeal húngaro Josef Mindszenty, exilado desde 1956 na embaixada americana em Budapest.
Mas a cultura progressista que acabo de descrever exercia seu fascínio sobre alguns homens da Igreja, convictos de que era necessário mudar a atitude de confronto com o mundo: renunciar aos anátemas e à condenação dos erros para colher o que o mundo apresentava de positivo. Era a tese defendida por Frei Yves Congar, dominicano francês, depois nomeado cardeal, que exerceu grande influência no Concílio. Ele afirmava que não existiam “germes ativos nos quais não haja também micróbios”; ou seja, erros nos quais não haja verdades. E como matar os micróbios significaria matar também os germes vivos, seria necessário, segundo ele, deixar prosperar uns e outros. A condenação dos erros por parte da Igreja, desde as heresias medievais até o Modernismo, havia extinguido os aspectos positivos neles presentes e teria sido melhor deixá-los viver e difundir-se. Congar propunha, então, mudar a Igreja internamente, por meio de “uma reforma sem cisma”. “Não é preciso fazer uma outra Igreja”, explicava, “é necessário fazer uma Igreja diferente”. Tal plano de modificar a Igreja a partir de seu interior era o antigo sonho, irrealizado, dos modernistas.
Entre os que acolhiam as teses de Congar havia um grupo de Padres conciliares da Europa central, entre os quais se destacava o Primaz da Bélgica, o jovem cardeal Léo-Joseph Suenens. Seis meses antes do início do Concílio, João XXIII pediu-lhe para preparar uma nota sobre o rumo que o Concílio deveria seguir. Suenens reuniu então um grupo de cardeais, no próprio Colégio Belga de Roma, a fim de discutir um plano e uma estratégia para o próximo Concílio. Participaram da reunião, entre outros, três prelados que iriam desempenhar papel decisivo: o cardeal Döpfner, arcebispo de Munique, o cardeal Liénart, arcebispo de Lille, e o cardeal Montini, arcebispo de Milão e futuro Papa Paulo VI. No documento que foi redigido com base nessa reunião, o cardeal Suenens lançava a palavra de ordem do “Concílio pastoral”, que foi adotada como linha estratégica por João XXIII.

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 Fonte: Revista Catolicismo : http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm/idmat/A7DED917-3048-313C-2E21AA93BB411573/mes/Mar%C3%A7o2011