sábado, 10 de dezembro de 2011

SÉC. XVII E XVIII: ALGO DE FILOSOFIA...




Por Fr. R.G. dos Santos 


Os dois séculos estão inseridos na “órbita” do período “moderno”. Assim sendo, já apresentam características que marcam um rompimento com pontos essências da Tradição que vinha se erguendo, por assim dizer, desde a antiguidade e que tomou vigor na Idade Média.

Desse modo, cumpre abordar de início os pontos comuns que, em ambos os séculos, marcam a “distinção modelar” com o período anterior e em seguida abordar um pouco das peculiaridades inerentes a cada um.

Em primeiro lugar, nos dois séculos a noção de sujeito é enfatizada, embora de modos distintos. Tal acento é uma conseqüência lógica do antropocentrismo do período moderno, pois nele o homem é o artífice de princípios universais e o grande mentor das descobertas científicas.
Thomas Hobbes

Seguindo-se ao antropocentrismo, engendrado pela ênfase no sujeito, tem-se agora também (e em ambos os séculos) o acento na razão no processo de conhecimento. No século XVII ela se dá na busca dos princípios universais que expliquem todo o cosmos. No século XVIII ela se mostra como “fiel escudeira” do progresso científico.

Tem-se também um enfoque na noção de movimento. Tal concepção é percebida na ênfase que se dá à atividade secular, ao trabalho, ao avanço da ciência. A mecânica é tratada aqui. Tem-se, por exemplo, o princípio da inércia.

Em ambos ainda a ênfase no objeto na perspectiva do ser é obscura, porquanto fogem afinal das considerações aristotélicas da realidade e das leituras feitas pelos medievais a respeito das mesmas. Por isso, não causa espanto ser Santo Tomás rejeitado com desdém por quase todos os pensadores modernos de ambos os séculos, visto que o mesmo se destaca pelas feições aristotélicas de seu sistema.

Neles percebe-se o gradual declínio da influencia religiosa no modo de ser, de viver e pensar. A razão e a ciência se encarregam gradualmente de dar o sentido da vida humana. Perde-se em muito a noção de teleologia, de finalidade, de sentido da vida. A ênfase agora é sempre na imanência, no tempo, no século, mesmo na perspectiva religiosa (pseudo-reforma, calvinismo...).

John Locke
Mesmo com esse pano de fundo comum que erigimos acima, é importante ressaltar também as diferenças notadas entre os dois séculos, sobretudo na perspectiva filosófica. No século XVII temos o método racionalista em voga. Trabalha-se à base de princípios gerais que expliquem todas as coisas. Tem-se, portanto a dedução como destaque. Aqui figuras como as de Descartes, Espinosa e Leibniz, dentre outros, são lapidares.

No século XVIII a ênfase é na experiência como serva da ciência. Tem-se, portanto o empirismo, com o acento no espírito de investigação e de análise. Destaca-se a indução, com o partir da consideração de fenômenos particulares para só a posteriori se aludir a questões universais. Hoobes e Locke são destaques, embora ainda se enfatizem a figura de Newton e de Descartes (embora não sejam de tal século).

São estas, portanto, as considerações (incipientes) a serem feitas acerca das aproximações e distinções entre os dois séculos indicados no título.

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Virgo Mariae, sedes sapientiae, ora pro nobis!



sábado, 3 de dezembro de 2011

RATZINGER E O MISSAL DE PAULO VI


O então Cardeal Ratzinger



O segundo grande acontecimento no início de meus anos de Ratisbona foi a publicação do missal de Paulo VI, com a interdição quase completa do missal anterior, depois de uma fase de transição de cerca de seis meses. O fato de que, depois de um período de experiências que não raro haviam desfigurado profundamente a liturgia, se voltasse a ter um texto litúrgico obrigatório, devia ser saudado como algo de certamente positivo. Mas fiquei pasmo com a interdição do missal antigo, uma vez que nunca ocorrera algo parecido em toda a história da liturgia.

Deu-se a impressão de que isso fosse completamente normal. O missal anterior fora realizado por Pio V em 1570, dando seqüência ao Concílio de Trento; era, pois, normal que, depois de quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo papa publicasse um novo missal. Mas a verdade histórica é outra. Pio V limitara-se a mandar reelaborar o missal romano então em uso, como no decurso vivo da história sempre ocorrera ao longo de todos os séculos. Não diferentemente dele, também muitos dos seus sucessores haviam novamente reelaborado esse missal, sem nunca contrapor um missal a outro. Sempre se tratou de um processo contínuo de crescimento e de purificação, em que, porém, a continuidade jamais era destruída. 



O então Cardeal Ratzinger celebrando o Rito Tridentino na FSSP 

Não existe um missal de Pio V que tenha sido criado por ele. Existe só a reelaboração por ele ordenada, como fase de um longo processo de crescimento histórico. O novo, depois do Concílio de Trento, tinha outra natureza: a irrupção da reforma protestante ocorrera sobretudo sob a forma de "reformas" litúrgicas. Não havia simplesmente uma Igreja católica e uma Igreja protestante uma ao lado da outra; a divisão da Igreja deu-se quase imperceptivelmente e teve a sua manifestação mais visível e historicamente mais incisiva na mudança da liturgia, que, por sua vez, foi muito diversificada no plano local, tanto que as fronteiras entre o que ainda era católico e o que  não mais o era, muitas vezes eram muito difíceis de definir. Nessa situação de confusão, possibilitada pela falta de uma norma litúrgica unitária e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, o Papa decidiu que o Missale Romanum, o texto litúrgico da cidade de Roma, uma vez que seguramente católico, devia ser introduzido em todos os lugares onde não se pudesse reivindicar uma liturgia que datasse de pelo menos duzentos anos antes. Onde isto ocorria, podia-se conservar a liturgia precedente, dado que o seu caráter católico podia ser considerado certo. Não se pode de fato, pois, falar de um interdito em relação aos missais anteriores e até aquele momento regularmente aprovados. Agora, ao contrário, a promulgação da interdição do missal que se desenvolvera ao longo dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da antiga Igreja, implicou uma ruptura na história da liturgia, cujas conseqüências só podiam ser trágicas.

Como já ocorrera muitas vezes antes, era totalmente razoável e estava plenamente em linha com as disposições do Concílio que se chegasse a uma revisão do missal, sobretudo em consideração da introdução das línguas nacionais. Mas naquele momento ocorreu algo mais: fez-se em pedaços o edifício antigo e se costruiu um outro, ainda que com o material de que era feito o edifício antigo e utilizando também os projetos anteriores. Não há nenhuma dúvida de que esse novo missal continha em muitas das suas partes autênticas melhorias e um real enriquecimento, mas o fato de que ele tenha sido apresentado como um edifício novo, contraposto ao que se formara ao longo da história, que se proibisse este último e se fizesse de certo modo a liturgia aparecer não mais como um processo vital, mas como um produto de erudição especializada e de competência jurídica, trouxe-nos danos extremamente graves. 



A chamada "missa afro" 

 Foi assim, de fato, que se desenvolveu a impressão de que a liturgia seja "feita", que não seja algo que existe antes de nós, algo de " dado", mas que dependa das nossas decisões. Segue-se daí, por conseguinte, que não se reconheça esta capacidade decisional só aos especialistas ou a uma autoridade central, mas, em definitivo, cada "comunidade" queira fazer sua própria liturgia. Mas quando a liturgia se torna algo que cada um faz por si mesmo, ela não nos dá mais aquela que é a sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é um produto nosso, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida.


Virgo Mariae, ora pro nobis!

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Cardeal Ratzinger, A Minha Vida.